Leaving Neverland

Michael, o que você fez?

Imagem: divulgação.

A gente nunca vai saber a resposta para a pergunta que serve de título a este texto. Michael Jackson morreu há dez anos e levou para o túmulo o que poderia, quem sabe, admitir agora, após o filme-bomba.

Eu assisti às quatro horas do documentário "Leaving Neverland", da HBO, no fim de semana. E confesso ter perdido o sono com o que vi.

Não sou fã de carteirinha de MJ. Mas gosto das músicas, dancei na escola quando era moleque e tenho até hoje o vinil de "Thriller".

Depois, apesar da deterioração física e artística, continuei acompanhando a carreira de Michael com atenção. Seus dramas, a infância perdida, seus filhos gerados por mães de aluguel e as turnês milionárias. Eu chorei quando ele morreu. 

As dúvidas sobre o comportamento do músico com as crianças, especialmente os meninos, nunca me afetaram tanto. Sempre foram interrogações sem resposta clara, inclusive nos processos em que MJ foi formalmente acusado.

O documentário, no entanto, é de revirar o estômago. O filme, dirigido pelo premiado Dan Reed, foca nos relatos de dois rapazes que alegam ter sido abusados entre as décadas de 80 e 90 pelo maior astro da música. Boa parte desses abusos teria acontecido no rancho Neverland, onde o cantor mantinha um parque de diversões para receber as crianças e suas famílias.

A riqueza de detalhes, a construção da narrativa, os depoimentos dos familiares e as consequências do abuso na vida de todos os envolvidos quase não deixam dúvidas de que algo errado aconteceu.

Foto/Divulgação: O diretor de "Leaving Neverland", Dan Reed, posa entre Wade Robson e James Safechuck, que dão detalhes dos abusos praticados por Michael Jackson. 

Há uma dualidade cruel nessa história: MJ era uma boa pessoa (seus feitos humanitários não me deixam mentir) e foi o maior artista pop que o mundo conheceu (vide todos os recordes que quebrou). O documentário não questiona isso. Porém, joga luz sobre um assunto obscuro, polarizador e que acabou sendo minimizado após a morte do cantor em 2009.

Depois de ver o doc, busquei todo tipo de notícia sobre o assunto e entrevistas. Por mais que os fãs mais ardorosos insistam no fato de que MJ jamais poderia ter feito coisa parecida, o filme é bem-sucedido no que se propõe e torna difícil sair em defesa do astro. É bom que se diga que os dois rapazes já tinham negado os abusos em outras ocasiões.

Os motivos são explicados no filme. A descrição consistente sobre como MJ agia com eles revela o que pode ter sido um padrão no comportamento de um pedófilo predador, doente e que precisava de ajuda. Também mostra que o Rei do Pop não era tão inocente quanto se pensava. Pelo que se vê ali, ele tinha consciência de que, caso as denúncias fossem comprovadas, sua carreira estaria arruinada.

O ponto alto é o tom dos depoimentos. Os acusadores, em nenhum momento, fazem a caveira de Michael. Pelo contrário, fazem questão de dizer que o amavam, que foram bem tratados, assim como as famílias. Em determinado momento, a gente se pergunta até que ponto tudo isso não era orquestrado para seduzir, conquistar e manipular.

Imagem/Divulgação: foto exibida no documentário de MJ com James Safechuck, 
menino que teria sido abusado pelo cantor. 

É sabido que o abuso sexual envolve uma relação de poder. Em alguns casos, até admiração pelo abusador. Por vezes, o abusado não se considera uma vítima, e sim um cúmplice, um par. Especialistas são categóricos em dizer que é comum que os abusados queiram proteger seus abusadores por anos, sem se dar conta do estrago.

Antes do doc, eu costumava colocar "Jam", uma das minhas canções favoritas de MJ, pra tocar bem alto no quarto. Após o doc, não tive mais coragem. Nem sei se um dia terei. Continuo perturbado, triste. Não se trata apenas de uma desconstrução de imagem. Foi uma aniquilação.

Em vários países, rádios estão se recusando a tocar MJ. Estátuas do artista estão sendo removidas dos museus. O mundo começa a se questionar sobre a adoração de um ídolo que pode, sim, ter mentido e destruído a vida de muita gente. O cantor já mentiu antes sobre as plásticas no nariz. Imagina sobre o que não estava na cara.

Michael, pelo amor de Deus! O que você fez?

Comentários