Reflita

Bird Box: que diabo é isso?

Foto: divulgação.

Depois de assistir a Bird Box, entendi porque a Netflix investiu tanto na divulgação do filme. Não que seja ruim e precisasse de publicidade compensatória. Pelo contrário, é excelente. Vejamos. 

Baseada no livro de Josh Malerman, a produção parte de uma premissa simples: pessoas vendadas tentando sobreviver em um mundo dominado por uma espécie de mal que, se visto, leva ao suicídio.

Filmes como Fim dos Tempos e Um lugar silencioso já flertaram com roteiros semelhantes, mas Bird Box vai além, fortemente apoiado no atual contexto sócio-histórico em suas camadas mais profundas.

Na superfície, já é possível fazer uma série de interpretações. A venda, que representa a fé cega ou um pulo no escuro, pode ser atribuída ao assombro da maternidade (duas personagens, com perfis destoantes, estão grávidas) e suas consequências. 

A história também é um constante exercício de empatia. Sobram situações em que as decisões são tomadas a partir dessa perspectiva, de colocar-se no lugar do outro. Especialmente em relação aos cegos, que ocupam um espaço de privilégio e certa superioridade perante uma maioria que enxerga e, por isso mesmo, torna-se vulnerável. 

Afinal, o que determina quem sobrevive, quem é melhor, quem é merecedor? São as nossas posturas diante das circunstâncias. O mundo gira, e elas mudam. 

As inúmeras leituras possíveis sobre o fim do mundo são outro ponto alto da história, repleta de lacunas entregues à nossa imaginação. Fala-se, por exemplo, sobre uma tal verdade purificadora, a fim de contextualizar os suicídios.

Outro detalhe curioso: no filme, os loucos são aqueles que se identificam com a bagunça. São aparentemente maus e, por isso, não sofrem os efeitos do caos. Isso os torna aliados das supostas criaturas, que nunca se revelam. Demônios? Alienígenas? Fique à vontade.

Voltemos ao marketing massivo. Poucas vezes vi tantos outdoors e anúncios na TV para divulgar um filme exibido nesse tipo de plataforma. Sim, é preciso pagar o cachê da Sandra Bullock. Porém, um outro motivo desponta como o mais provável, a fim de decifrar as várias camadas de Bird Box.

É importante entender que, nos Estados Unidos, a maioria dos meios de comunicação não simpatizam com o presidente Trump. Isso inclui a indústria do entretenimento e seus braços na música, na TV e no cinema.

Foto: divulgação.

Assim, a adaptação de Bird Box pela Netflix pode ser decodificada como uma espécie de pavor diante de ideologias sedutoras e igualmente perigosas, como as de Trump (muros, misoginia, conservadorismos indesculpáveis etc). Em suma, campanha antiTrump. Divulgada à exaustão.

Se partirmos do princípio de que a ascensão da direita, especialmente nos Estados Unidos, pode ser, na visão dos mais progressistas, um período de trevas em muitos aspectos, Bird Box, então, toma outra forma e importância.

Considerando que uma população significativa se rendeu aos pseudoencantos desses extremismos, sem se dar conta de seus prováveis tentáculos, é plausível deduzir que essas mesmas pessoas cometeram um tipo de suicídio, representativo da morte de suas próprias identidades, ilusões e anseios.

A venda, aqui, incorpora ares de uma proteção necessária àquilo que seduz pela aparência, e não pelo seu real conteúdo. Em outras palavras, vendar os olhos funcionaria como um escudo contra os demônios do mundo real, capazes de desestabilizar o que se entende como "bem".

Nesse sentido, o desfecho de Bird Box (não vou contar) se encaixa na ideia de que, de alguma forma, conseguimos encontrar um refúgio em meio ao caos, suficiente para guardar as sementes desse "bem".

Foto: divulgação.

Num mundo tão polarizado, ideológica e politicamente, o filme pode ser assimilado como uma tentativa de influenciar milhões de espectadores sobre como devemos resistir à sedução diabólica dos que ascenderam à política em razão de propostas entendidas como demagogas, impulsionadas por um ambiente caótico.

Temos, portanto, um filme de terror eficiente nas frentes em que ele se propõe: na diversão, por meio de uma história assustadoramente bem contada; e na reflexão social, à medida em que nos apresenta um monstro que, na nossa cabeça, assume a forma que a gente quiser, ou daquilo que a gente mais teme, inclusive a dos nossos líderes.

Para terminar: por que o filme se chama Bird Box (Caixa de Pássaros)? Essa é muito fácil. Quem assistiu, já sabe. Se não for o seu caso, pegue a pipoca e boa sessão.

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