Madonna, 60

A grande incompreendida

Madonna, by Romero Brito.
Imagem em: https://flog.vip/verluci/12450875

Eis que chegamos a este dia: 16 de agosto de 2018. Há exatos 60 anos, nascia Madonna. Preciso aproveitar a deixa para colocar alguns pingos nos "is". Em alguns casos, desenhar para quem ainda não entendeu como essa mulher, hoje praticamente uma lisboeta (entendedores entenderão), traçou (e ainda traça) contornos indeléveis nesta sociedade conturbada e carente de líderes de verdade.

Primeira lição: não sou um fã, desses inconsequentes, cegos, incautos. Sou um estudioso de Madonna. Fiz pós-graduação em Linguagens Midiáticas e Mestrado em Linguística, tendo como pano de fundo a obra riquíssima e contraditória da rainha do pop. Traduzindo: eu sei do que falo.

Em quase 35 anos de carreira, Madonna serviu como fio condutor para inúmeras transformações sociais que extrapolam o pop, entre elas a liberação sexual pós-Aids (com camisinha), o respeito às minorias (negros, gays), o empoderamento feminino (sem queimar sutiã) e a liberdade de gênero e pensamento.

Tudo o que se verbaliza hoje, em tons berrantes, seja nas redes sociais ou fora delas, Madonna já falou e continua falando. Do feminismo de batom à homofobia, passando pelo racismo e pelo sexismo, nomeie. Madonna se apoderou desses discursos desde os anos 1980, com propriedade e ousadia, no verbo e na arte.

A cantora durante show, este ano, no baile anual do Met Gala.
Foto em: https://www.breatheheavy.com/hallelujah-watch-madonnas-surprise-performance-at-the-met-gala/

A cartilha seguida à risca pelas cantoras pop contemporâneas (nos discos, nas roupas, nos discursos e nos shows), Madonna escreveu na raça. Ela não é Deus. Inclusive, nutre uma ideia bastante peculiar (mas não menos respeitosa) sobre Ele. Mas é preciso admitir que, se não inventou as montanhas e os oceanos, é a responsável por muitas das fórmulas que a cultura de massa embala e apresenta a essa geração de Arianas e Lovatos.

Madonna não é uma cantora de potência vocal. Sua voz é comercial, agradável, de alcance razoável e que, ao vivo, pode soar desafinada. Porém, encarnou com perfeição o espírito imagético dos tempos pós-modernos. 

É na imagem (do videoclipe aos shows) e nas mensagens (libertárias e até conservadoras, em alguns momentos) que Madonna se engrandece. É uma artista que se apropria de sexo, religião, família, casamento e comportamentos para oferecer sempre uma leitura do mundo à frente de seu tempo.

No trono, em homenagem a Prince, durante o Billboard Music Awards de 2016.
Foto: Chris Pizzello.

A rainha (título que lhe outorgamos por mérito), agora sexagenária, cometeu vários pecados mortais numa sociedade que insiste em silenciar não apenas mulheres fortes, mas todos os sujeitos que desafiam a moral e os bons costumes. Madonna foi uma das pioneiras no universo pop a encampar o sexo por prazer e fazer dessa rebeldia uma forma de contestação e provocação à hipócrita sociedade norte-americana.

Madonna falou pelos gays numa época em que ninguém ousaria. Madonna falou pelos negros quando Michael Jackson embranquecia. Madonna levou todas as minorias para o palco para que fossem protagonistas de seus espetáculos, onde mostra realmente a que veio. 

Nos estádios, na plenitude da ribalta, ela canta, dança e faz referências esteticamente perfeitas a cineastas, pintores, escultores, personalidades políticas e humanitárias que, como ela, recusaram-se a se apequenar diante dos desafios.

Como filantropa, Madonna faz mais pelos pobres da África (e até do Brasil, onde coordena projetos anônimos nas favelas) do que os políticos. No Malawi, onde adotou quatro filhos, a cantora ergue centros cirúrgicos e escolas. Mais do que saúde e educação, as obras representam esperança a um povo que só conhecia a fome e a morte.

Não vou detalhar aqui a discografia e a filmografia, repletas de sucessos que estarão para sempre no imaginário coletivo. Também vou pular a apimentada biografia que, em breve, estará nos cinemas para mostrar como Madonna enfrentou a pobreza e os abusos para se tornar um ícone incontestável de um século para outro. Aos 60, ela não parou, como muitos desejavam e esperavam. Prepara novo disco, vai dirigir mais um filme e promete outra turnê milionária.

Assim, Madonna, neste ponto de sua existência, desafia o discurso da decrepitude, da aposentadoria e da sexualidade proibida a quem envelhece. Entre seus maiores detratores estão as próprias mulheres, a quem, ironicamente, ela sempre deu voz. Muitas preferem que Madonna cale a boca, desapareça. 

Há as que a massacram pela aparência plastificada, pelo esforço em parecer jovem a qualquer custo, pelas roupas sensuais demais para "uma senhora" e pelo fetiche por homens mais novos. Pois acostumem-se: essa é Madonna, enfrentando, a seu modo, o mundo que condena, à revelia, quem ousa derrubar o padrão de juventude.

Madonna chega ao Met Gala 2018, cujo tema foi sexo e religião, sua praia.
Foto em https://www.jamesnews.com/met-gala-best-dressed-2018-rihanna-kim-kardashian-selena-gomez-more/2018-metropolitan-museum-of-art-costume-institute-benefit-red-carpet-new-york-usa-07-may-2018/

Madonna envelhece como quer, em público. Faz exercícios, alimenta-se bem e se submete a tratamentos estéticos caros, porque pode e precisa. Madonna é conteúdo e imagem. É escolha dela fazer o que achar necessário para se manter vendável no mercado machista e etarista da música. Sobretudo, é sua prerrogativa recorrer ao que bem entender para se sentir bem consigo mesma, sexy, ativa. 

Mãe de seis filhos, patrona da comunidade LGBTQ, celebridade solidária, cantora mais rica e famosa de todos os tempos. Madonna é tudo isso e também um ser humano. Ímpar. Em quem eu me espelho diariamente para atingir ao menos um décimo de sua grandeza, tão subestimada. Nesse vilarejo chamado Terra, habituado a se despedir cedo demais de seus grandes (Jackson, Whitney, Amy, Donna, Hendrix, Elvis, Prince, George...), Madonna se mantém como um pilar de força e obstinação.

Aos que a criticam, especialmente pela aparência "retocada", sugiro que façam uma autoavaliação. Encarem o espelho e depois as próprias fotos "filtradas" no Instagram, a fim de esconder as imperfeições a um bandinho de seguidores fúteis. 

Madonna se expõe para milhões, dá a cara (e o espírito) a tapa, para tornar esse planeta um lugar menos insuportável. Só por isso, seus críticos deveriam se recolher à sua insignificância. E, quem sabe, juntar-se aos que batem palmas para essa mulher, que não é perfeita. Mas tá quase lá.

Comentários

  1. Bravo ! Meu amigo, bravíssimo !!! Você conseguiu expressar muito claramente, tudo o que penso e sempre senti pela Madonna. Depois deste texto FANTÁSTICO sobre ela, a única coisa que tenho a dizer é: OBRIGADA !

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    1. Gratidão e admiração: em resumo, o que sinto (sentimos, né?) pela Madonna. E tô com sdd de vc, Faby! Sempre bom ler seus comentários por aqui. Bjo!

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