Desapego

Tudo passa


Os clichês, às vezes, funcionam. Minha mãe sabe disso e tem um clássico na manga: "tudo passa".

Pensar nisso causa um certo desconforto. Se tudo passa mesmo, o que é ruim passa, mas o que é bom, também.

Prefiro usar outros termos: desapego e transição. Principalmente agora, neste momento em que reflito sobre as amizades, perenes e temporárias.

A gente tem o péssimo hábito de achar que algumas coisas são para sempre: o amor, os amigos, o emprego, o cachorro, enfim, aquilo que nos traz conforto e equilíbrio.

A vida, no entanto, é movimento. Tudo muda. As situações, pensamentos e sentimentos trocam constantemente de lugar. É preciso saber quando o que era bom passa a ser inútil.

Os amigos são um bom termômetro. Eu já tive tantos, cada um com sua importância e significado, em diferentes períodos da vida. De repente, o carro da vida acelera e fica sem sentido carregar roupa velha, que desbotou, não serve mais.

Amizade, assim como a linguagem, não pode ser analisada fora de um contexto histórico e social. Só faz sentido de acordo com o seu tempo e a história em que se desenvolveu.

Amigos são sinônimo de identificação. São como nosso espelho. Não por serem iguais, mas por nos darem um reflexo do que realmente importa. E isso, às vezes, morre. O espelho quebra. E a vida segue.

Eu poderia dizer que amigo de verdade é pra vida inteira. Não vou cair nessa armadilha. Alguns são. Mas a maioria dos amigos, assim como os amores, têm um papel a cumprir na nossa vida. Uns podem ser protagonistas. Outros, coadjuvantes. Só que quase ninguém escapa do fim da novela.

Me lembro de um episódio emblemático, com um amigo que já considerei irmão. Quando criei o blog e comecei a escrever os primeiros textos, mandei o link pra ele. A resposta veio assim: "Achei legal, mas acho que você deveria escrever sobre política e economia".

Era o fim, eu sabia. Meu amigo já não me reconhecia mais. E eu não me reconhecia mais nele. Se as minhas paixões são música, cinema e comportamento - E ELE SABIA DISSO - por qual motivo eu mudaria as pautas do MEU BLOG? É bobo? É. Mas foi um divisor de águas. Não me lembro mais de qual foi a última vez em que desejamos feliz aniversário um ao outro.

A pior sensação, porém, é a de perceber que só você rega a plantinha da consideração. Amizade, assim como o amor, a gente não força. Ou flui, encaixa, ou é melhor deixar ir, desapegar, respeitar a transitoriedade da vida.


Eu já consigo ver o belo na transição. Enquanto digo adeus ao sapato que aperta o pé, dou as boas-vindas aos novos espelhos, com novos reflexos e coisas a me dizer.

Tenho um apreço enorme pelos amigos que cruzaram meu caminho e hoje são só lembrança embaçada. Até por aqueles que não foram amigos coisa alguma, apenas achei que fossem, coisa de ingênuo.

Já apertei a mão de invejosos. Já abracei bajuladores, loucos, mal-intencionados. Já beijei o rosto de mentirosos, fúteis, canalhas. Sim, já me enganei. Quem nunca?

Mas também já me permiti sentir a melancolia típica de quem vê queridos companheiros partirem, simplesmente porque os santos, antes inseparáveis, não batem mais.

Aí a gente bota um CD pra tocar, frita batata, olha a programação do cinema e pensa em tudo o que a vida tem de maravilhoso pra gente descobrir. Afinal, tudo passa. Né, mãe?  

Comentários

  1. Tudo passa.... costumo repetir essa sábia frase da sua mãe. .. infelizmente gostaria que algumas pessoas ficassem mais tempo. .mas tudo passa. Por isso tô em busca de alguém que passa bem devagar... mas que passe, como tudo. Amei o texto...Parabéns. perfeito como sempre. ..

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    1. Quando a gente aprende que tudo na vida é temporário - inclusive a própria vida, não é mesmo? - o universo muda ao nosso redor. E uma imensa serenidade passa a fazer parte do nosso cotidiano. Obrigado, Cris, pela visita. Volte sempre. Bjo pra vc.

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  2. Como sempre, mais um belo texto. Você escreve com palavras, mas usa o sentimento, é incrível como eu me identifico com seus textos, parece que você escreve coisas que acontecem, aconteceram comigo e torna-se o meu porta-voz. Encaixou certinho a sua frase "A pior sensação, porém, é a de perceber que só você rega a plantinha da consideração.", super feita pra mim essa frase. Parabéns, meu amigo, continue escrevendo sobre aquilo que você mais sabe fazer e saiba que sempre tem um pouco, ou muito de mim nos seus textos...

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    1. Identificação, Renato. Eis a palavra mágica. Obrigado novamente e um forte abraço!

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  3. Quero lhe parabenizar por mais um texto incrível, desta vez nos trouxe um assunto meio complexo, mas vamos lá.. Gostaria de dizer que você utilizou uma palavrinha chave: identificar-se que provém de identificacao ou até mesmo identidade. Acredito que tudo realmente passa, exceto a nossa identidade (quem somos, o que somos, o que nos tornamos com nossas experiências) isso não muda, é perene assim como nossas impressões datiloscópicas que tem o objetivo de nos "identificar" tornar-nos únicos perante os demais. Para qualquer relacionamento dar certo, é preciso muito mais que uma simples compatibilidade, é preciso que a sua identidade complete as lacunas da outra pessoa, ou seja, a identidade de espírito, a mesma espiritualidade ou maneira de ser e entender a vida., .. Por este motivo a amizade e a lealdade residem numa identidade de almas raramente encontrada.
    Flávio "Praga"

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    1. Belo comentário, Flávio. Mas acredito que, se estamos sempre mudando, nossa identidade muda junto.

      Também costumo me questionar sobre uma coisa: a busca pelo igual para que o relacionamento, de amizade ou amoroso, dê certo.

      É claro que tem que haver afinidade, objetivos em comum, mas acredito que as diferenças, quando se complementam, também podem ser muito recompensadoras.

      Buscar o igual, sempre, não nos faz crescer. E precisamos exercitar a aceitação, o que só é possível com a diferença.

      A identidade de almas, seja pelas afinidades, seja pela distinções que se complementam, existe. Não é tão comum. Mas, como também diz minha mãe, "é tão bonito quando duas almas se entendem".

      Obrigado, "Praga" (rsrs), pela sua visita. Gostei muito das suas observações, apesar das minhas ressalvas.

      Volte mais vezes. Bjão pra vc!

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  4. Incrível, Rô, a sua leveza e liberdade para se despir de velhas crenças. Amizade também é perceber que precisamos nos refletir, o que não faz dela uma farsa. Aliás, é com as verdades escancaradas que entendemos as diferenças e respeitamos o direito do outro de ir e vir. E o nosso também! Sem peso e sem culpa! Sou sua fã! Hoje e sempre, perto ou longe! Bjo imenso!

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    1. Lili, minha eterna companheira, de perto ou de longe. Lindas palavras, me emocionei. Você ocupa um cantinho especial no meu coração, minha linda. Muito feliz de ver você por aqui. Bjos.

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  5. "Amizade, assim como o amor, a gente não força. Ou flui, encaixa, ou é melhor deixar ir, desapegar, respeitar a transitoriedade da vida."

    Gostei muito do texto que me fez refletir muito sobre como eu me relaciono com as pessoas, me mostrou, sem máscaras, como funciona a vida no entanto não nos faz perder a capacidade de se maravilhar com ela, realmento é uma mistura de sentimentos muito interessante que tráz a leveza peculiar da arte da escrita sem que percamos nossa capacidade de refletir sobre a mesma, o que aparentemente são opostos, neste texto se apresentam complementares de uma forma inteligente, sagaz e singela. "Carpe Diem".

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    1. Meu querido Caíque, que honra ter você por aqui. Bela observação! E muito obrigado pelas considerações ao texto.

      Ser elogiado por um filósofo e ser humano como você só me engrandece, acredite. Volte sempre. E nos vemos no mestrado, rsrs. Forte abraço!

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  6. Que maravilha...esse texto veio no dia certo pra mim...adorei. um grande beijo

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    1. Fico muito feliz que tenha se identificado com o texto e, principalmente, que tenha passado aqui pra me contar, querida Mariangelica. Faça isso mais vezes, rsrs. Um grande beijo pra você também.

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  7. Zivi, como sempre um texto espetacular! Mesmo distante continuo a admirar como escreve com a alma, os sentimentos fluem das palavras ou será as palavras fluem dos sentimentos, já não sei...rsrs. O que posso realmente afirmar que passei mesmo que discretamente pela sua vida, pude apertar sua mão, dar um abraço apertado e o considero um amigo! Ainda bem que nunca esqueci seu aniversário...rsrs, nem que seja uma mensagem discreta e objetiva enviei....kkkk. Olha que bacana tudo realmente passa, o que fica são lembranças, as minhas com você são ótimas. Abraço.

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    1. Só faltou se identificar, anônimo. Não sei quem é, por enquanto, mas obrigado pela amizade, rsrs.

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  8. Eu, como quase sempre, me identifiquei por completo. Aí pensei em comentar isso ou aquilo, mas só tenho duas palavrinhas a dizer: É ISSO!
    Beijo cheio de carinho sincero.

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    1. Obrigado, Lu, por sempre estar por aqui e pelos comentários perspicazes e espirituosos. Torço por você. Outro beijo.

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  9. Me deu um saudade agora dos amigos que já passaram pela minha vida....
    Belo texto, parabéns! jaime

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  10. Valeu, Jaiminho! Que sempre prevaleça a saudade das amizades que se foram. Sem mágoas. Isso se chama maturidade. Abração!

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