Amor de fachada

O velhinho da fila
Foto: cassiojuniornunes.wordpress.com

Começou com os gritos e logo percebi os primeiros tapas ardidos. Era uma briga de casal no meu prédio. Os dois vociferavam rancor e ódio, alimentados pela convivência diária sob o mesmo teto.

A rotina é capaz de banalizar até a mais linda história de amor. Por causa dela, surge a necessidade de mudar, corrigir, implicar com o outro. Quando nos damos conta, jogamos uma pá de cal sobre o conselho de Clarice Lispector: "Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."

Vida de casal, ouso desconfiar, não é pra todo mundo. Tenho amigas que vivem no inferno, mas não se separam de seus parceiros. Uma delas quase foi morta. Outra quase se matou. Gostam de dizer que amam. Nas redes sociais, estão sorridentes. Um disfarce para as lágrimas do cotidiano que, aliado ao medo da solidão, paralisa a mudança.

Reconheço que é difícil perceber quando a relação vai à falência. Existem as dificuldades que a gente supera. Aquelas que, por mais incômodas, revelam-se menores que o amor. De repente, aparecem as que nos fazem repensar os caminhos: o abandono emocional, a indiferença, o desinteresse pelas pequenas coisas que antes proporcionavam prazer. Às vezes, o resgate é possível. Às vezes, não. Demorar demais para perceber isso pode ser a diferença entre a felicidade e o conformismo. 

Conformado com o casamento morno de mais de uma década, um colega deixou escapar dia desses: "A única coisa que eu não quero é ficar sozinho". Nessa hora, me lembrei de um velhinho que observei na fila de um laboratório. Ele estava sozinho. Presumi que não tivesse filhos nem esposa. O senhor usava óculos e um chapeuzinho estiloso. Estava sorridente, animado e conquistava a simpatia dos funcionários e de quem mais estivesse à sua volta. Apesar da idade avançada, agia com independência. Não era solitário. E tinha o principal: saúde. Física e mental. Xeque-mate.

Eu prefiro saúde aos tapas ardidos. Tapas que podem ser mais sutis do que a gente imagina. Recentemente, conheci um casal que namora com a corda bem frouxa. Os pombinhos usam aliança só quando estão juntos. Se um viaja, estão automaticamente liberados para as baladas e tentações mundanas. Para mim, isso seria pior que bater. Como diz minha irmã, o mundo está podre. Os "encalhados", com o perdão da expressão, são mais felizes do que pensam.

Minha dentista é outro exemplo emblemático de como demoramos a notar o fim de uma relação. O casamento dela já tinha terminado por uma série de motivos. Mesmo assim, aguentou mais 11 anos até a ficha cair. Ainda bem que caiu. O recomeço é para os fortes.

Impossível não citar aqui meu filme preferido, "Lua de Fel", do Polanski. Ali, o amor começa doce como caramelo e vai ficando amargo como boldo. O romance, aos poucos, abre portas para a competição, a vingança e ao prazer sadomasoquista de sofrer e fazer sofrer. O ciclo se instala numa morte precoce do coração que só bate porque não sabe fazer outra coisa. Um resumo, portanto, da armadilha em que nos metemos, em nome da carência e do pavor de encarar o mundo por nós mesmos.

Continuo acreditando que o amor romântico, a dois, é possível. Por vezes, ele é. Pelo tempo que se justifica. Do contrário, prefiro a coragem de recusá-lo. E ter muita saúde para envelhecer bem, em paz. Igual ao velhinho da fila.

Antes de me despedir com um beijo no ombro, deixo um pensamento de Sébastien-Roch Chamfort que sintetiza o segredo de uma vida equilibrada:  "É pelo nosso amor próprio que o amor nos seduz. Como resistir a um sentimento que embeleza o que temos, que nos restitui o que perdemos e que nos dá o que não temos?".

Comentários

  1. Muito bem colocado. Ótimo texto. E a serenidade para entender tudo isso? Quase sempre a pressão externa nos força à situação, à ladeira abaixo - ao conformismo. Certa vez, vi a atriz Sophie Charlotte dizer que não acredita em amor eterno, mas em amores que se transformam. E que se o casal souber se adaptar bem e curtir essas transformações, poderia levar pra vida inteira - caso esse amor realmente siga assim.

    Outra: “No casamento da filha do ator e diretor Sílvio de Abreu, o padre, após o momento da bênção, passa a palavra a ele, que solta: ‘Que sejam muito felizes enquanto for possível” – trecho do livro "É Tudo tão Simples", da Danuza Leão.

    É exatamente isso: enquanto saudável, "pelo tempo que se justifica".

    À saúde!
    Aos recomeços com versões ainda melhores de nós mesmos!

    Beijo, Ro.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nossa, Matheus, só o seu estava sem resposta aqui, rs. Disso tudo que vc escreveu, a parte que mais gostei é é a do casal que sabe se adaptar bem às transformações. Porque isso é inevitável. E essas transformações nem sempre são fáceis de entender. O termômetro é mesmo o amor, o sentimento, a vontade de estar junto e de trabalhar a relação.
      E essa crônica da Danuza eu já li e gostei bastante.
      Thanks a lot!

      Excluir
  2. Como certa vez eu disse, "Melhor matarmos o relacionamento, antes que o relacionamento mate o nosso amor..."

    Mesmo amando, algumas (todas) as vezes em que me relacionei de forma mais "séria", chegou um momento em que foi necessário analisar para onde estávamos seguindo... e nem precisa dizer qual caminho acabou sendo escolhido...

    Nas palavras de Samantha Jones (Sex and the City S05E03) "Eu te amo, mas eu amo muito mais a mim..."

    É duro abrir mão de um relacionamento, por mais estranho, complicado, difícil que ele seja... e depois do término, ao primeiro momento de carência, vem a sensação de: "o errado fui eu?!?!?"

    Mas enfim, concordo com você, precisamos saber como e quando abrirmos mão de uma relação fadada ao fracasso, ooou, pelo menos trabalhar da forma correta para que ela possa se fortalecer e renovar...

    Por fim, acredito que as pessoas ainda não aprenderam, na sua maioria, a diferenciar amor, paixão e ideia fixa...

    Quem sabe um dia aprendamos a como nos relacionar, e encontremos esse alguém que nos faça "o melhor de nós"...

    Até lá?!??! Quem sabe...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah, que bom que você veio comentar aqui, Seimir.
      Sou suspeito para falar de "Sex and the City", porque essa tem sido minha terapia antes de dormir há anos. É a minha referência para muita coisa.
      Também sou a favor de lutar para que as coisas não caiam na vala comum, para salvar um relacionamento onde há muito amor, mas isso exige o esforço dos dois! Como diz o ditado, quando um não quer, dois não brigam.
      Às vezes, parando pra pensar bem, acho que, na verdade, sofria de "ideia fixa", rsr.
      Precisamos sentar pra conversar mais, meu querido.
      Obrigado sempre pelo prestígio.

      Excluir
  3. Ahhhh verdade!!! Vida de casal não é fácil!!!! Em resumo o que todos querem é encontrar a TAL FELICIDADE...mas vamos falar um pouquinho sobre relacionamentos!!!voltando ao casal ferro e fogo ...vamos imaginar quando se conheceram...um primeiro olhar, um interesse físico, ( afinal amor a primeira vista só em filme...)uma troca de idéias...gostos em comum...ahhh pronto... achou a alma gêmea , viveram felizes para sempre e the end!!!Humm mais isso não é um filme de romance e é vida real...juntaram as escovas de dentes rsrs, no inicio tudo lindo, sonhos compartilhados e batalhados para se tornarem reais...mas depois de algum tempo eis que ela chega : a maldita rotina!!! E o que leva um casal a rotina???Alias a rotina é algo que faz parte, o que se pode fazer é tentar driblá-la, nunca vencê-la e com o tempo se adaptar a ela!!!mas qualquer relacionamento antes de qlq coisa tem que ter como chão o respeito, como parede a aceitação dos defeitos ( ninguém é perfeito e amor verdadeiro aceita e aprende com os defeitos do outro) e como teto o principal : AMOR, se o chão desaba as paredes caem e teto desmorona em cima de tudo!!! e com tudo isso fixo como concreto ainda assim ela chega do mesmo jeito...a danada rotina...vamos aprofundar um pouquinho mais...vamos falar de uma trágica conseqüência dessa rotina( não generalizando , pois nem toda rotina tem esse final) , que em mtos casos é o principal motivo das tempestades de um relacionamento...ela ...a mais cruel e dolorida... a TRAIÇÂO!!!!ela que dói, magoa, gera raiva e desejo de vingança...e lógico acompanhada de outro terrível sentimento : CIUMES!!! Nossa como amar as vezes é difícil ... é sinônimo de dor!!!Será??Mas o AMOR é mais sublime e vem acompanhado de outro sentimento nobre : PERDÂO!!! AAHHH como gostaria de trocar uma idéia sobre o amor com aquele que mais cantou e tentou explica-lo : Renato Russo!! Lembra daquela canção : http://www.youtube.com/watch?v=ekWEeiZ_FNg !!! My God e será que depois de tudo isso pensamos : será que vale a pena??Será melhor ficar só?? Essa incógnita somente o coração de cada um pra responder, porque o ser humano é assim como diria Drummond : UM ESTRANHO IMPAR!!! E digo mais : o que Deus colocou no homem é o que o torna assim, mas esse "estranho ímpar" é o que o leva o Homem a ser responsável por suas atitudes, individual. AAAH tofalando mto já!! Esse tema é infinito rsrs!! E ainda cantando o amor eu resumiria assim : http://www.youtube.com/watch?v=NyeM34xq5I8 !!! O Amor é estranho, sem explicação.. é para ser vivido, sem se importar com os preconceitos de uma sociedade hipócrita, tem que ser sem fronteiras, raça, cor ou sexo!!! Apenas para ser vivido, e não explicado, escolhido entre milhares de pessoas, apenas uma pessoa !!!

    ResponderExcluir
  4. Elaine! Adorei seu livro, rsrs. Você tem razão, o tema é infinito! E concordo com muito do que você disse. A gente tem que sentir que vale a pena, pronto. Acredite, eu ergui as paredes sobre um chão bem assentado. E jamais acreditei que o teto fosse desabar. Na verdade, não desabou. Eu desmontei a casa, porque agora ela não serve mais. Sem mágoas. Vou construir uma muito melhor e mais sólida com a experiência que adquiri, pode apostar!
    Nem preciso dizer o quanto gostei do nosso cinema no sábado à noite, né? Sua família é linda. E se apronte pra balada que ela tá chegando, rs. Bjos e volte sempre.

    ResponderExcluir
  5. Nem sempre a gente consegue perceber isso logo de cara né, Rô? Acho que, em alguns casos, o amor-próprio não é nato e aí, a aprendizagem do quanto ele é fundamental e benéfico chega aos poucos. O importante é chegar, né? Pra variar, adorei a sua linha de raciocínio de quem já colheu uma cesta farta dos frutos da vida.
    Muitos beijos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. E mesmo quando é nato, Lu, a gente é colocado à prova muitas vezes. A cesta está farta, pelo menos, rsrs. Bjos.

      Excluir
  6. Ahhh, que gracinha!!!! Adorei o velhinho do final da fila!!!! Muito gracioso o texto!!!
    Bjos, Marília-

    ResponderExcluir
  7. Rodrigo, a pouco conheci seu blog, que delicia seus textos! Incrível como me identifico com vários deles. Tenho a sensação de estar sentada com um velho amigo trocando assuntos e interesses em comum. Após um divórcio o recomeço é um pouco difícil, e no meu caso esse texto veio reforçar a idéia de que fiz a escolha certa. As vezes, bate sim aquele medo de envelhecer sozinha, mas prefiro assim. Terminar uma relação em paz antes que ela se transforme em ódio, é a melhor coisa apesar de alguns telespectadores desejarem um final sangrento. O mais importante agora é preservar a saúde e viver pelo menos até os 100 anos, rssrsrsr, tenha uma ótima sexta, bjos,Rose.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O importante, Rose, é a gente estar em paz com as nossas decisões. E ser feliz, até onde for possível, diante das possibilidades da vida.

      Excluir

Postar um comentário