As aventuras de Pi

O homem, o tigre e a fé

Minha mãe costuma dizer que Steven Spielberg é de outro planeta, porque tem uma sensibilidade ímpar para contar histórias fantásticas. Eu acho que o posto de extraterrestre, pelo mesmo mérito, deve ser ocupado por outro cineasta: Ang Lee.

"As aventuras de Pi", seu filme mais recente, não é apenas uma aula de cinema. É um convite à reflexão sobre a fé, através de uma metáfora infalível: a dos bichos. A história do garoto que sobrevive ao naufrágio e se vê obrigado a conviver com um tigre de bengala em alto mar pode soar simplista demais aos desavisados. Mas é a passarela perfeita para o desfile de proposições sobre a vida e o que realmente importa, ante a uma realidade tão besta como a nossa, contaminada pela futilidade das redes sociais e preocupações desmedidas sobre o insignificante.

Lee fez com "Pi" o que já tinha feito com "Brokeback Mountain": um filme melhor que o livro. Na história dos caubóis, o embate era entre o amor e o preconceito. Agora, é entre ciência e religião, razão e divino, na dosagem exata para encher o espectador de dúvidas.

Não faltam interrogações. Animais têm alma? Ou espelhamos neles, irracionalmente, nossas próprias emoções? Somos seres superiores, inteligentes e emotivos? Ou selvagens disfarçados pela civilização, prontos para o ataque, em nome da própria sobrevivência? A natureza, bela e furiosa, é também indiferente, cruel? Ou pode ser um teste de resistência ao caráter com desígnios nobres? Nascemos bons e virtuosos? Ou somos apenas treinados para manter as aparências e suportar a convivência?

Muitas das respostas, como mostra "Pi", estão na fome. A aflição física, em seu estado mais bruto, "é capaz de mudar completamente a percepção que o homem tem de si mesmo". Afinal, é através da satisfação dos instintos primários que nos igualamos aos seres mais elementares. E que, no caso de "Pi", nos diferenciamos em igual medida. 

No cinema, o heroi, mesmo à beira da morte, encontra meios de exercitar a parcimônia, a tolerância, a compreensão e o raciocínio, diante de uma fera que não hesitaria em devorá-lo se tivesse forças. Assim, mergulhado no paradoxo da dúvida e do medo que nos ajudam a viver, se dá o encontro metafórico com Deus.

"As aventuras de Pi" é ainda um deleite para os olhos. As imagens foram cuidadas para impactar em 3D. Sem a reflexão, no entanto, até mesmo a paisagem mais linda perderia o sentido. Em síntese, uma questão de interpretação. 

Somos, de certa forma, tigres, zebras, hienas e macacos, num mesmo zoológico, em busca de uma harmonia, por enquanto, utópica. Alguns evoluem. Outros se limitam a mastigar. Muitos olham só para si mesmos. Poucos estão um passo à frente. Mas só através do desapego - mais uma palavra-chave no filme de Lee - é possível aprender e ensinar. É preciso deixar o tigre ir, sem chorar por ele não ter olhado para trás. Para quê o adeus?

"Pi" é sobre crer na beleza e no significado do que acontece com a gente. Talvez a única falha seja se explicar demais no final, algo compreensível para uma obra-prima que posa de arrasa-quarteirão. Deixa isso pra lá. Enquanto Ang Lee existir, estaremos salvos nas salas de projeção. 

Comentários

  1. Vi o filme e adorei. A ciência e a religião estão na balança, mas acho que a ênfase está mais na crença, seja ela qual for. É importante acreditar em algo que nos faça bem e evoluir, essa talvez seja a mensagem mais forte do filme.

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  2. Rodrigo, assisti ao filme no cinema, e agora lendo o seu blog, pude entender melhor o que você quis passar ao leitor. Logo logo estarei postando no Cinemalismo sobre 'As Aventuras de Pi', que por sinal, é um grande filme!

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    1. Belíssimo filme, não é mesmo? Dos que vi até agora, e que estão na disputa pelo Oscar, achei o melhor. Merece algumas estatuetas! Vou conferir o seu texto depois, Fernando. Abraço e volte sempre.

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  3. Cara, gostei da sua reflexão sobre o filme. Você abordou pontos-chaves da obra, de fato. Só acho que os créditos principais deveriam ser dados a Yan Martell, autor do livro que deu origem ao filme e não a Ang Lee, que o adaptou às telas. Mas foi um texto bastante interessante e que cumpriu o que o se propôs a fazer, parabéns.

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    1. Oi, Matheus. A ideia era falar do filme mesmo, pois achei a adaptação brilhante. "Pi", com todo o respeito ao livro, tornou-se uma obra essencialmente visual nas mãos de Lee, sem, no entanto, perder o conteúdo filosófico e emocional. Mas talvez tenha faltado, ao menos, uma menção ao escritor, afinal, sem ele, não haveria o filme. Obrigado pela visita. Um abraço!

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  4. eu não gostei do filme,eu só vi o filme porque eu vi um vídeo e pela narrativa do filme que eu vi nesse vídeo,eu resolvi ver,o filme deixa muitos espaços em branco que não é explicado,eu também não gostei da parte que ele conta a história verdadeira,não aparece ele como aparece quando ele conta a história,o cara do filme é um vegetariano hipocrita que não come carne,mas se alimenta de carne humana e animal,eu acho que quem fez o filme deveria explorar mais tempo na ilha e parar de focar só no mar e aquelas alucinações que ele vê no filme são muito ruim

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  5. Ameeeeeeeeeeeei o filme, vi duas vezes porque uma só não foi suficiente...provavelmente verei outras vezes. A beleza das lições, a verdade que há no olhar do tigre (trabalho de computação gráfica de pirar...de tão perfeito)...ah...mto bommmmm. Sou louca por animais e a reflexão sobre nossa relação com eles e com as nossas feras internas mexeram mto comigo. Parabéns pelo post!

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    1. Obrigado, Maria Tereza! Eu adorei o filme, chorei que nem bobo na cena da despedida dele e do tigre, rsrsrs. Ang Lee em excelente forma com esse filme. Bjo!

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  6. ó, mais um pra listinha do final de semana... alguns amigos já haviam sugerido mas eu tinha esquecido. Teus questionamentos são bons, estou pesquisando a origem de alguns comportamentos humanos e o que se tem de material pra explorar é muito escasso, são raras as escritas dos tempos passados e é preciso ainda desconfiar das traduções por causa das censuras todas promovidas pelos poderes dominantes. Algumas referências são A Epopeia de Gilgamesh, O Bardo Thodol, Hermes, Homero, Horácio, Platão... e o que já foi estudado sobre isso: Spinoza, Hume, Smith, Nietzsche, Sêneca, Freud, Jung, Reich...
    e as perguntas permanecem:
    "Somos seres superiores, inteligentes e emotivos? Ou selvagens disfarçados pela civilização, prontos para o ataque, em nome da própria sobrevivência? A natureza, bela e furiosa, é também indiferente, cruel? Ou pode ser um teste de resistência ao caráter com desígnios nobres? Nascemos bons e virtuosos? Ou somos apenas treinados para manter as aparências e suportar a convivência?"

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  7. Obrigado pelas dicas! O assunto rende, principalmente porque a natureza humana é um universo ainda muito obscuro.

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