Novos tempos


O cinema matou o casamento
Me lembro com riqueza de detalhes da época em que meus pais se separaram. Como se a adolescência já não fosse fardo suficiente, a vida ordenou que eu carregasse também o peso extra do amadurecimento precoce. Não me queixo. Costumo dizer que o divórcio, em minha trajetória, equivale ao Iluminismo na França do século 18.
Meu primeiro passo rumo ao esclarecimento foi questionar ferozmente o casamento e as razões que nos levam a ele. Descobri, graças a papai e mamãe, que não é preciso se casar para ser feliz. Amar, sim. E o cinema tem sido um excelente condutor dessa idéia.
“Beleza Americana” , de Sam Mendes, vencedor de cinco Oscars há oito anos, é o melhor exemplo que a sétima arte já conseguiu produzir no sentido de desmistificar a instituição do matrimônio. Ali, os personagens mergulhados na miserabilidade de uniões por conveniência percebem o erro tarde demais. E os “loucos”, invariavelmente incompreendidos, acabam se revelando mais sensatos, coerentes e, não por acaso, donos de uma felicidade mais palpável.
Sam Mendes repete a fórmula, embora de forma mais densa, em “Foi apenas um sonho” (distorção incompreensível do título original, "Revolutionary Road"). Para retratar a falência de um relacionamento, levado adiante por todas as razões erradas, ele escolheu uma dobradinha inusitada de atores: Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, que protagonizaram o água-com-açúcar “Titanic”. Só que, desta vez, o casal se engalfinha em diálogos de revirar o estômago sobre conformismo, comodismo e os falsos valores que brotam de um casamento de corpos, mas não de almas e corações.
Para os desavisados, “Foi apenas um sonho” pode ser uma experiência traumática. A história golpeia até mesmo a crença de que ter filhos é sempre uma experiência maravilhosa. April, a personagem de Kate Winslet, é, de longe, a mais perturbadora. Desapontada por não conseguir fazer deslanchar sua carreira de atriz, a esposa e mãe de dois filhos se vê presa na armadilha que criou para si mesma e cada vez mais longe da possibilidade de se libertar. Ela desmorona quando conclui que não se casou por amor, que pariu por uma mera obrigação social e que matou seus sonhos para corresponder ao que a sociedade esperava dela.
April espelha a história de muitas mulheres. Mesmo hoje, quando supomos ser mais fácil fazer frente a preconceitos tão antigos e maquiavélicos como os que norteiam o casamento. Afinal, por que casamos? Será que o simplório mandamento biológico que nos conduz ao crescimento, reprodução e morte vale realmente para todos? Ou alguns de nós estaríamos fadados a não nos resignar e tentar decifrar outro propósito?
Eu tive a sorte de pulverizar essas interrogações durante a separação dos meus pais. Ainda adolescente, me conheci como alguém que não é absolutamente contra o casamento, mas que tem ojeriza a dizer “sim, aceito”, na frente de um padre, sem se questionar. Assim, “Foi apenas um sonho”, mais do que a catarse perfeita, funcionou, para mim, como uma confirmação.
O verdadeiro tesouro
Se o cinema, frequentemente, se firma como um fio de esperança a quem olha com saudável cinismo aos valores pré-estabelecidos, a cultura pop, quase sempre, se presta ao papel inverso. A norte-americana Kate Perry, que no ano passado ficou famosa ao cantar que gostou de beijar outra garota, agora faz sucesso com o videoclipe ultraconservador da faixa “Hot N Cold”. Nele, a moça aparece vestida de noiva, perseguindo com desvairo bem-humorado o pretendente que hesita no altar de uma igreja lotada. O que deveria ser mais uma peça divertida e inofensiva da era MTV torna-se um retrato incômodo de uma realidade que parece não se enquadrar na moldura de seu próprio tempo. Kate Perry representa toda aquela que busca se casar a qualquer preço pra fugir da solidão e se encaixar no velho molde. Um contraste curioso com as balzaquianas descoladas da série televisiva “Sex And The City”, por exemplo, que parecem já ter descoberto que o casamento é mais um desfile de modas do que garantia de amor e plenitude. E que a pior solidão é aquela vivida a dois.
É justamente nesse embaraçado nicho de conceitos sobre os caminhos para a felicidade que “Quem quer ser um milionário” ("Slumdog Millionaire"), agraciado com oito Oscars, surge como um copo de limonada gelada num dia de verão. Dirigida pelo competente Danny Boyle, a saga do jovem indiano que fatura 20 milhões de rúpias num programa de perguntas e respostas é a mais perfeita metáfora sobre a única verdade à prova do tempo e da mudança de costumes: a de que só o amor vale a pena.
A mensagem do filme é muito clara: a fortuna, simbolizada pelo dinheiro, chega como prêmio ao pobre menino que sobreviveu às intempéries da vida e aprendeu com os traumas, erros e acertos. O genuíno tesouro, aquele que o torna de fato milionário e vencedor, é o grande amor que o destino lhe permite viver no final. Um amor raro e valioso como um diamante, porém sem preço. Um amor que todos buscamos, mas sorteado a poucos na insana loteria da vida. Um clichê tão reacionário e ilusório quanto o casamento às escuras. Mas necessário, para que, quem sabe um dia, sejamos capazes de torná-lo real e, enfim, vivermos felizes para sempre.

Comentários

  1. Os seus textos são como um diário de sobrevivência nesse nosso mundo.
    Meus sinceros cumprimentos pela clareza nas informações.
    Um forte abraço.

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